sexta-feira, 19 de setembro de 2008


Foto: Pedru Li

Noite, rua deserta, o relógio marcava mais ou menos onze horas. É normal naquele lugar a rua adquirir um ar melancólico ao entardecer, talvez pela ausência de pessoas, talvez porque a própria rua se sinta só. A verdade é que nesse dia ela talvez tivesse um motivo.

Naquele cenário, os únicos espectadores eram o casal que caminhava rápido – como de costume. Aos passos apressados, ela sentia a guerra interna pela qual passava se apossar do seu corpo – guerras aquelas, comuns às mulheres confusas como ela. Já nele, sentia o pesar, o desespero, como se a qualquer momento fosse desabar, mas ele, sempre preocupado com ela, tentava em vão fazer a figura do homem forte. A noite envolvida pela luz do luar – e como estava linda a lua – esfriava e fazia com que aquele momento se assemelhasse a um final de filme, onde tudo passa em slow motion, quase congelando os movimentos dos personagens principais.

O caminho que percorriam, parecia não ter fim, e os passos acelerados pareciam fazer o coração dela sangrar mais depressa. Sentia que não queria chegar ao destino final. Sabia o que lhe aguardava. A cada passo, uma infinda dor, como se ao colocar os pés no chão, cravassem uma faca em seu peito. Calou-se em seu silêncio. De repente, percebeu que ele a olhava, virou, não queria que ele percebesse sua aflição. Sentiam-se em suas tristezas, na decisão que se aproximava, na futura ausência um do outro. Não arriscavam nenhuma fala, e continuavam a entreolhar-se disfarçadamente. Um olhar perdido, daqueles que pedem por socorro, que desejam a cura para os maiores males da humanidade, os mesmos que querem implorar, falar as coisas mais absurdas, simplesmente por não querer perder algo que faz bem e não apenas bem, faz feliz. Mas eram prudentes, e digo mais, eram tolos. Olhavam-se, sofriam e calavam.

Ao se aproximar do destino final diminuíram o passo, sabiam que o fim estava próximo, deram as mãos e, de maneira particular, puxavam e apertavam como se dissessem um ao outro “não me deixa”. Não queriam desvencilhar-se. Nem ele, nem ela. Aquele gesto era um simples sinal de força a um casal que demonstrou vários sinais de coragem. De mãos dadas, ela se lembrou das promessas de amor que haviam feito, sempre acompanhadas de um “pra sempre”, de um “nunca” e a promessa é essa ou deveria ser.

Chegaram enfim ao destino final, pararam, tentaram algo que mudasse aquela situação, mas foi em vão. Amavam-se, sabiam disso. A pouca autoconfiança, carência e medo talvez fizessem com que às vezes achassem o contrário, mas se amavam, amam e sabem disso. Na memória, flashs de toda aquela fantástica realidade. Era do tipo que acredita em finais felizes com direito a eternidade, casa com quintal, declarações de amor em público, sorrisos bobos e apelidos mal bolados, mas não sabe mais como viver com seu desejo de ser feliz.

A rua acabou. Mas a história não, e por mais que não se escreva mais nada sobre aquele dia, a memória se encarrega de fazê-la lembrar, o que nunca esqueceu.

Catarina Barbosa

sábado, 6 de setembro de 2008


Foto: Carlos Sillero


Me deixem em paz”, dizia ela aos prantos.

Julia era uma mulher forte, decidida e bem sucedida, mas não era muito boa com relacionamentos. Nos últimos tempos, quem estava de fora poderia até dizer que “colecionava desgostos”. Daniel, seu, agora, ex-namorado, era um bom partido, como diriam. Carreira estável, educado, cavalheiro, romântico, do tipo que liga antes de dormir só pra desejar “boa noite”, manda flores, paga a conta e ainda é bonito. Até aquela noite, tudo parecia um conto de fadas para Julia, mas será que é possível viver contos de fadas?

O aniversário de 30 anos de Luisa, sua melhor amiga, foi o palco para o espetáculo daquela noite, que estava longe de ser a aniversariante. Daniel pegou Julia pontualmente às nove, tempo de ela sair do trabalho e ir em casa se arrumar. Como sempre, chegou cinco minutos atrasada. Paulo a recebeu com um sorriso. Beijaram-se como cumprimento e seguiram para a festa. Estava radiante, linda em seu belíssimo vestido prata. Era uma mulher bonita em seus 32 anos de idade, tinha cabelos longos e pretos, a pele morena clara, olhos castanhos e um belo par de pernas que fazia qualquer homem virar como se fosse uma bela bunda, tão adorada pelos brasileiros. Seus 1,64m combinavam com seus 52 kg ‘’suamente’’ malhados e o vestido valorizava suas formas. Daniel comentou no caminho: “você está linda”. Sabia que estava linda. Antes dele aparecer para buscá-la, recebeu inúmeros olhares da porta do apartamento até o hall de entrada do prédio, sem contar que experimentou o vestido várias vezes, olhando atenciosamente cada possível defeito. Então, era difícil estar feia. Olhou para o namorado, escolheu o tipo modesto e disse: “que isso, não tem nada demais, é só um vestido”.

Ao chegar ao aniversário pôde ver como Daniel estava, afinal quando entrou no carro não dava para ver direito. Estava lindo, quer dizer, era lindo. Branco, 30 anos, 1,85m de altura, forte, musculoso não, forte. Cabelos castanhos claros e um belo sorriso com covinhas no rosto que davam a ele uma aparência angelical. Estava de calça social jeans escura, camisa preta e um sapato social marrom, aparentemente simples, mas encantador. A barba feita, o relógio e o perfume que a deixava louca, completavam o conjunto. Sentiu-se a mulher mais feliz e sortuda do mundo. Um homem bonito, cavalheiro, que a amava, pensou “finalmente encontrei alguém com quem posso ser feliz”.

Ao entrar no aniversário foi recebida pela anfitriã, e como Luisa era boa com festas, nunca contratou serviço de buffet, recepcionistas ou coisas afins, só os garçons mesmo. Dona Raimunda, mais conhecida entre a gente como “dona rai’, era a responsável pelo sucesso das festas de Luisa em parceria com sua mãe, a “tia Antônia”, responsável pela decoração. Dona rai, tinha 60 anos de idade, mas ninguém a impedia de trabalhar e não gostava de ficar parada. Luisa compensava o serviço dela, com bons pagamentos. Era, na verdade, membro da família. Já sua mãe, desde que perdeu o marido, pai de Luisa, morava com a filha e fazia questão de tomar a direção da casa.

Luisa recebeu a amiga rindo como sempre, tinha uma risada gostosa de ouvir, ao contrário da de Julia que era escandalosa. Disse rindo à amiga: “vamos entrando, que as duas estão com tudo hoje”. O casal se acomodou em um grande sofá. Ele pegou um copo de uísque e ela um suco de uva. Estava tudo perfeito, até que de repente, Luisa a olhou com aquela cara, que dá medo só de pensar o que pode ser. Julia entendeu o recado, deu um beijo no Daniel, e disse: “já volto, vou ao banheiro”, indo ao encontro da amiga.

Ao chegar ao corredor, Luisa a puxou e disse: “não sabes quem está aqui!”. Ela atordoada, disse: “fala logo, não me agonia Lu”. “O Paulo. Tá lá na frente. Conversando com a minha mãe”, disse ela pausadamente. “O Paulo?!”, indagou Julia com a surpresa de quem viu um elefante rosa, “sério?”, continuou. A amiga, com o semblante sério, respondeu: “sério, e o pior, disse que quer falar contigo”. A cabeça de Julia girou tudo o que precisava naquele momento era não encontrar com o Paulo, na verdade, não precisava encontrar com ele nunca mais na vida, pensou.

Paulo, foi seu primeiro namorado, acabaram porque na época em que eram namorados, descobriu que ele a traiu com sua professora de inglês, Carla. Uma bela mulher, além de ótima pessoa, a pobre não teve culpa, não sabia que ele era seu namorado. Enfim, aquilo era assunto do passado, achava que tinha esquecido, mas sua agonia parecia dizer que não. Tentou parar de pensar na presença dele, e voltou para o lugar onde se sentia confortável, ao lado do Daniel. Olhou para a amiga e disse: “hoje não”. Ela baixando a cabeça lamentou: “desculpa, não sabia que ele vinha, foi a mamãe que convidou”.

Quando voltou, seu namorado, até 15 minutos atrás perfeito, tinha arranjado uma conversa bastante atraente. Bárbara, sua maior raiva de adolescente, não era bonita, mas era incrivelmente interessante. Como a odiava. Chegou sorrindo, cumprimentou-a educadamente e sentou-se ao lado de Daniel. Percebeu rápido que a conversa entre eles fluía e 20 minutos depois, contados no relógio caríssimo do namorado, descobriu que estava deslocada e seu então namorado, havia estudado com a maldita Bárbara. Tentou em vão entrar na conversa, mas era excluída sempre que surgia alguma piada relacionada à medicina e pouco entendia sobre termos técnicos. Sua carreira publicitária, não pedia que entendesse aqueles termos, além do que, eles não eram interessantes pra ela. E como odiava não saber discorrer sobre algum assunto. Tinha vontade de sair dali, estudar e voltar só para ter o que dizer. Tentou fazer com que ele desistisse da conversa sobre vasos capilares, dizendo: “vou a varanda tomar um ar, vamos?”. Teve que repetir umas três vezes para que ele pudesse entender, foi então, que mudou de idéia e disse: “vou a varanda tomar ar”, e ele: “tá” e virou-se.

Levantou com a expressão mais insatisfeita do universo “como assim me trocar? Ainda por cima pela Bárbara!” que humilhação, pensou. Mudou de idéia, foi primeiro ao banheiro retocar a maquiagem, precisava disso. Disfarçar seu ódio, sua repugnância e a presença do Paulo na festa. Ao entrar no banheiro, chorou. Borrou a maquiagem toda, mas por sorte, tinha tudo na bolsa. Nem sabe como coube tudo ali dentro, lápis, rímel, corretivo, batom, enfim que bom que tinha tudo as mãos. Aliviada, linda e com cara de feliz, saiu do banheiro. A conversa no sofá continuava. Passou por eles e foi à varanda, mas ninguém a notou, Bárbara sim, mas fingiu que não a viu, o namorado nem isso.

Por incrível que pareça não tinha ninguém na varanda, ficou ali apreciando o jardim a sua frente, lindo, iluminado, verde, como gostava da natureza. A noite estava incrivelmente bela, o céu estrelado, o vento movimentando as folhas das árvores. Fechou os olhos e respirou fundo, deixou o vento passear nos seus cabelos, sentia tudo, a vida, a felicidade que não estava consigo naquele momento, tudo. Quando abriu os olhos, percebeu que tinha alguém que a fazia companhia. Era Paulo.

“O que fazes aqui?”, perguntou. Ele rindo, cínico como sempre, disse: “oi, tudo bom? Quanto tempo”. Não respondeu, conhecia àquele truque dele, tenta se fazer de bonzinho pra que ela esquecesse a raiva. Ele continuou: “estás linda, mais linda do que antes”. O elogio dele realmente não importava pra ela, pelo menos até aquele momento, mas ele deu continuidade: “não quero que digas nada, só escuta. Queria pedir desculpas sobre o que aconteceu com a gente, naquela época fui um idiota e não tive sequer a oportunidade de explicar as coisas. Nada do que eu disser vai mudar o passado, mas...”. Nesse momento teve vontade de interrompê-lo e dizer: “nada mesmo”, mas ficou calada e o deixou continuar. “Se eu pudesse não teria feito nada daquilo, foi algo que fiz e me arrependo até hoje, preciso que me perdoes” e foi se aproximando dela. Nesse momento deu um passo pro lado. A varanda era pequena, mas não tanto. Falou grosseiramente: “o que pensas que estas fazendo?”. Ele com os olhos cheios de lágrimas, disse: “eu te amo Julia, nunca te esqueci, passaram seis anos e eu não consigo te esquecer, já tive relacionamentos sérios, mas não consigo viver com outra pessoa, eu quero estar contigo”. Nesse momento sentiu o corpo congelar, não tinha estudado a probabilidade dele falar uma coisa dessas, sempre tentou de alguma forma planejar as coisas, pra não ser pega de surpresa e aí estava uma situação sem planejamento à sua frente. Sentiu que aquele momento era um desses em que as coisas acontecem quando menos desejamos. Ficou parada por um bom tempo, foi quando ele cobrou uma palavra: “fala alguma coisa”.

Paulo era bonito, não mudou muito desde a época em que namoraram, só adquiriu uma aparência mais séria. Tinha 33 anos agora, era branco, 1.80m, cabelos pretos, olhos e cílios grandes. O que ela mais gostava nele era o sorriso, na verdade sempre admirou sorrisos. Tinha também a mão macia, algo que lembrou quando ele tentou tocá-la. Sentiu o coração parar quando ele fez isso. Gostava dele, seis anos depois e ainda gostava de Paulo.

“Não sei o que dizer”, foi o que conseguiu pronunciar. Precisamos conversar em outra hora, em outro momento e foi saindo da varanda. Nessa hora, ele parou a sua frente e a abraçou “vai dizer que não sentes nada enquanto te abraço”, falou. Foi terrível e perfeito ao mesmo tempo, o abraço dele era o que ela não sentia nos braços dos seus, seis ex-namorados e inúmeros relacionamentos rápidos. Por isso não era feliz, não tinha o abraço do Paulo. Mas como pode gostar de alguém que a traiu? Não apenas fisicamente, mas traiu a sua confiança. Como pode? Não sabia a resposta, só sabia que o que eu sentia ali, em um simples abraço, e não sentia aquilo nos braços dos homens bem sucedidos e aparentemente perfeitos com quer se relacionou. Queria mais do que um abraço, queria ficar, estar com ele. Mas como passar por cima do seu orgulho? Retribui o abraço de forma desajeitada e encostou a cabeça no peito dele, e como de costume, fechou os olhos para se lançar ao momento que vivia.

Quando abriu os olhos Daniel e a Bárbara estavam na entrada da varanda, olhando para ela e para Paulo com uma expressão de surpresa e ódio ao mesmo tempo. “O que está acontecendo aqui?”, disse em voz alterada. Foi então que o Paulo respondeu: “eu amo a Julia, Bárbara. Desculpa, mas eu a amo”. Percebeu que tinha algo estranho naquela conversa. Paulo sem jeito virou para Julia e disse: “ela é minha noiva”. Não acreditou. Aquele era o quarteto amoroso mais sem cabimento da face da terra. Ela com o Daniel e a Bárbara com o Paulo. Parece que teria que mudar seus conceitos sobre as festas da Luisa, algo que deveria ser divertido, não passava de piada sem graça nenhuma.

Tentou sair dali, mas não consegui. Daniel a segurou pelo braço e quase chorando perguntou “o que estavas fazendo nos braços dele Julia?”. Ela, sem reação, deu uma desculpa esfarrapada “tava abraçando, ele é um amigo”. Foi então que ele começou a gritar: “Amigo? Ele diz que te ama e tu abraças ele? Estas louca Julia? O que tu estás fazendo?”. Tentou sair, mas ele ficou cada vez mais descontrolado, nunca viu o Daniel assim, ele era sempre tão calmo.

De repente, todos os convidados começaram a olhar para ver do que se tratava. Bárbara aos gritos com o Paulo, pedindo explicações, chorando e Julia com o Daniel, tentando explicar em vão o que nem ela tinha entendido. Num acesso de raiva, ela empurrou o namorado e conseguiu sair da varanda. Todos olhavam atentos, num silêncio quase sepulcro, provavelmente pensando “que vergonha” e pra piorar, não conseguiu segurar as lágrimas, o rímel borrou todo o seu rosto de preto, o vestido lindo, agora estava amassado, o cabelo desarrumado.

Na saída da casa da amiga, sentiu uma mão puxar seu braço com força, “não vai embora, vamos conversar...”, era Daniel, consternado depois que Paulo explicou que nada havia acontecido. Ela, descabelada, com a maquiagem borrada não queria mais saber de conversa. Nesse momento, todos vieram para a porta, como mulheres fofoqueiras nas portas de suas casas. O circo estava armado, odiava aquilo. Paulo apareceu com cara de arrependido na porta e implorou em prantos: “não vai, precisamos conversar”. Nessa hora fez sinal para um táxi que passava, Daniel tentou novamente fazer com que ela ficasse “fica, eu te levo em casa, vamos conversar...”. Julia, orgulhosa, optou naquele momento por deixar duas pessoas chorando, sem se importar com ninguém, apenas consigo mesma. Como não sabia perdoar, abriu a porta para guardar mais um desgosto e com rancor, gritou aos prantos: “Me deixem em paz”.


Catarina Barbosa

quarta-feira, 14 de maio de 2008


Foto: Marques Tavares Carlos



Um pouco de dor de cabeça pela noite mal dormida, a boca seca, conseqüência das alimentações fora de horário e um imenso enjôo. A vontade de ficar na cama é grande, mas não adianta, tem que levantar. Espreguicei-me sem abrir os olhos e peguei meu óculos na cabeceira da cama. Quando olhei em volta vi minhas coisas todas fora do lugar. Achei estranho. Não lembro de ter feito aquela bagunça. Esfreguei novamente os olhos com força para ter certeza que não era um sonho. O local me era familiar, algumas fotos espalhadas, um pouco de brigadeiro em um prato e uns cd’s dos Beatles espalhados pelo chão... Estanho muita coisa ali não parecia ser minha... Roupas e sapatos de grife, equipamentos eletrônicos que eu nem sei pra que servia e um enorme convite de festa que preferi não olhar, justamente para não me sentir mal por faltá-lo.

Perto da minha cama, uma garrafa de uísque – estranho, não bebo uísque – a mais alguns passos uma imensa caixa com o meu nome. Sentei no chão, abri a caixa e dentro dela vários papéis datados de 1997, 1996, 1984 pensei que poderia ser documentos de algum cliente ou mesmo informações para produzir uma matéria. Mas não. Era um dossiê sobre a minha vida. A pasta de 1997 trazia com detalhes o que eu havia feito durante aquele ano. Assustei-me, esfreguei os olhos novamente – dessa vez com vontade de que aquilo realmente fosse um sonho – nada mudou. Folheei os papéis e nada faltava do contrário lembrava-me de certas coisas que haviam acontecido que eu por algum motivo fiz questão de esquecer. “Isso só pode ser uma brincadeira de mau gosto”, pensei. Tirei tudo da caixa e espalhei pelo chão, fui até a cozinha pegar um antiácido, meu estômago estava doendo muito.

Ao entrar na cozinha, revirei a gaveta de remédio – sim, sou hipocondríaca – peguei o remédio, um copo com água e voltei para a sala. Na volta para o cômodo, um papel pregado na parede do corredor dizia: “confesse”. “Mas o que é isso? Tem algum maníaco na minha casa?” Arranquei o papel com força e olhei a letra cuidadosamente, nunca vi aquela letra na minha vida. Ao entrar na sala, a caixa e os papéis que havia espalhado pelo chão sumiram. “Como assim? Estavam aqui a menos de cinco minutos”. Olhei em volta, os lírios em cima da mesa estavam mortos – eu amo essa flor, pena que morreu. O vento entrava com força no apartamento, as cortinas balançavam com um ar de desespero, como se dissessem “Corre. Esse lugar não é seguro”. Mas aquele clima de suspense mesclado com terror me deixava imóvel.

O dia – pelo que via entre as cortinas - estava nublado e mesmo assim ventava. Dei um passo pra trás e tropecei na caixa. Não agüentei, sentei no sofá, coloquei a mão na cabeça e pedi pra acordar daquele pesadelo. “isso tem que ser um pesadelo”, desejei.Passaram cerca de 10 minutos e nada mudou, a caixa continuava ali, com informações de toda a minha vida a disposição de quem quisesse saber. A dor no estômago persistia e a de cabeça aumentava. O local ainda era familiar - sabia que era minha casa, minha vida - mas e o que não reconhecia? O material prevalece, meu corpo padece. O que se deve fazer quando se tem toda a sua vida a sua frente?


Catarina Barbosa

quarta-feira, 23 de abril de 2008


Foto: Geoffroy Demarquet

Homem
Costela
Criação
Companheira
Amiga
Curiosa
Pecadora
Traidora
Banida
Desprezada
Venenosa
Perigosa
Submissa
Procriadora
Dona de Casa
Serviçal
Revoltada
Bruxa
Queima
Apedreja
Bate
Mata
Livre
Atirada
Vulgar
Escandalosa
Assanhada
Galinha
Corajosa
Forte
Trabalhadora
Mãe
Dona de casa
Casada
Divorciada
Mãe solteira
Amada
Solitária
Amarga
Feliz
Sensível
Inteligente
Bonita
Misteriosa
Mulher




Catarina Barbosa

segunda-feira, 3 de março de 2008


Sete da manhã e você se jogava em cima de mim, me abraçava muito forte, e baixinho eu ouvia o já esperado, acorda papai!
O seu olhar de quem queria carinho me cercava toda manhã, e de repente minha cabeça se desligava daquele quarto e me pegava pensando nas contas que eu teria que pagar durante o dia, no meu chefe que se alimentava de gritos, nas filas e clientes insuportáveis daquele escritório, e pronto! Esses eram os motivos clássicos pra você ter que ficar calada e se retirar do quarto, incrível como eu não precisava te relembrar, as expressões em meu rosto eram os sinais de que você precisava se retirar antes que eu me irritasse.
Nos finais de semana você invadia o quarto um pouco mais tarde, às nove, me acordava com abraços e dizia que queria nadar.
Nadar era uma boa, mas o celular não iria me deixar em paz, e eu precisava resolver tudo com urgência, então você ia com a babá, mas me ligava incontáveis vezes para me lembrar que eu era o seu pai querido e que você me amava muito.
A minha vontade era ficar horas com você na piscina, ou até mesmo no celular durante as suas ligações, mas logo apitava outra ligação, era o meu chefe e lá vinha mais trabalho.
Os dias passavam lentamente e "amanhã" sempre era a palavra da vez, portanto, amanhã eu teria que dá um jeito nisso. Sua mãe me alertava desse meu descaso, e eu sempre prometia mudanças a ela, a você, a mim.
Foi quando me dei conta de que eu precisava do seu abraço quentinho e do seu sorriso inocente. Larguei tudo no trabalho, e lá estava o meu chefe gritando para que eu ficasse, pensei rápido e me demiti. Vi que você era muito mais importante pra mim.
O trânsito estava péssimo devido a chuva que caía, fechei os meus olhos e chorei. Sentia saudade de você, e uma sensação estranha que me fazia querer chegar logo em casa.
Uma luz muito forte quase me cegou, ouvi um barulho muito alto, e por instantes senti meu corpo flutuar. Um acidente.
Saí do carro pra vê o que tinha acontecido, uma enorme bola de gente se fez alí, eu fui me enfiando entre as pessoas pra saber o que era, e cada vez mais rápido, e cada vez mais assustado. Ninguém me escutava, e mesmo assim eu ia entrando, e de repente me vi jogado no chão, com sangue por todo o meu corpo.
O que eu estava fazendo naquele chão? Por que conseguia me enxergar?
Como Deus?
Por que agora?
Tarde demais.
Tarde demais pra eu te dar um abraço bem forte.
Tarde demais pra te pedir desculpas pela minha ausência, pra te dizer que o papai não iria mais trabalhar naquele local que me afastou de você.
Tarde demais pra dizer que você era o motivo mais bonito que me fazia viver.
Tarde demais para tantos reparos agora sem chances de acontecer.
Tarde demais pra planejar o seu futuro e acompanhar o seu crescimento.
Eu queria que você soubesse que o papai te ama muito e que irá rezar eternamente por você.
Me perdoa, filhinha.


Tylla Lima
Foto: Filipe Santos

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Foto: Rui Pires


Encontrei no armário textos antigos, cartas de um amor escondido.
Fazia tempo que eu não sentia o meu coração pulsar tão forte dentro de mim, a ponto de me enlouquecer por instantes.
Vivemos um romance repleto de desentendimentos, e de acusações, ofertei tudo de mim e você nem ligou.
Eu fui embora e deixei você acreditar que a minha decisão era a correta.
Deixei você se encontrar fora de mim.
Deixei você.
Por vezes falei em mudanças, e eu deixei você mudar.
O tempo passou arrastando, além dos aniversários, as minhas mentiras, e as noites eram seguidas de lágrimas e as manhãs de desespero.
Deixei você amar outras mulheres.
Deixei você esquecer-se de mim.
Por vezes pensei em te procurar pra te dizer que a vida estava perdendo o sentido, e que os meus passos precisavam dos teus.
Mas optei pelo orgulho, e preferi seguir sozinha.
Eu sei que nunca me perdoarias pela minha estupidez e por essas minhas omissões.
Foi quando me dei conta que o seu casamento estava marcado, e que além do seu casamento estava planejado o meu também, eu senti raiva de mim.
Nos primeiros trinta anos sem você, passei dias inteiros de recaída nos quais eu compartilhava com as mesmas folhas antigas que usava pra te escrever, e no final de tudo isso, além de raiva, sentia vergonha de mim.
Meus filhos, sobrinhos e alguns netos diziam em qualquer comemoração de família que me tinham como exemplo de mulher que sabia como amar, e que sonhavam com um casamento igual ao meu.
O que falariam de mim se soubessem que o homem que eu amava não era aquele com o qual me casei?
Como consegui transparecer tão bem felicidade e certeza no meu rosto e nas minhas atitudes se dentro de mim só existiam mágoas?
Nos outros trinta anos, me forcei a acreditar que eu era feliz, e que você não me faltava.
Hoje, passados sessenta anos, sessenta! Eu ainda te amo, ainda te preciso, não com toda aquela urgência, nem com tanta intensidade.
As marcas em meu rosto e essa expressão de solidão, embora nunca tenha permanecido sozinha, me consomem, me ardem e me ferem.
Ao longo desses contados e lentos sessenta anos o meu sono desaparecia e a agonia surgia todo final de noite. Era estranho observar ao meu lado um alguém que não era você.
Eu chorava de saudade e por sentir pena de mim, a minha vida estava chegando ao fim, e eu vivi uma realidade da qual nunca quis fazer parte, durante tanto tempo, e
u enganei outro amor.
É. Eu deixei você seguir.
Deixei você partir.
Eu não fiz nada, eu omiti.
Meu Deus, por que permiti?


Tylla Lima

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

"Que sentimento?"



Foto: Catarina Krug


O dia na redação foi apertado e o trânsito também não ajudou. O compromisso estava marcado para às nove. Ela sabia que não ia dar tempo. Tentou ligar, mas o celular não completava ligação. Chegou às dez. Em cima da mesa o papel dizia “reservado”. O garçom ofereceu ajuda, mas a resposta foi de se esperar “saiu faz dez minutos”. Não se perdoou. Sentou-se à mesa, pediu uma água. Respirou fundo. Pagou a conta e decidiu ir pra casa.


Morava no 21°andar. Ao entrar tirou o sapato e soltou o cabelo. Foi ao aquário falar com João e Maria, seus peixes. Preferia cachorro, mas não tinha tempo para se dedicar a um. A desculpa do espaço não servia mais, já que esse apartamento era bem maior que o outro. Deixou a chave em cima da mesa de cristal e sem querer quase derruba o vaso de flores artificiais que também estava em cima da mesa. “Por quanto tempo ele esperou?”. Foi até a geladeira, pegou um copo de leite. Percebeu que tinha muita comida delivery fora da validade, jogou tudo fora e descalça levou o lixo pra fora. O corredor estava silencioso, ouviu um barulho. Sorriu. Pensou que poderia ser ele, mas não era...


Entrou, trancou a porta e colocou a chave no mesmo lugar. Decidiu tomar uma ducha pra relaxar. Passou pelo corredor e entrou no quarto. Tudo estava em ordem, ninguém poderia suspeitar que ali vivia alguém a beira de um colapso. Tirou a roupa e por um instante se olhou no espelho. Continuava bonita aos seus 35 anos de idade.


Colocou o cd “Be here now” do Oasis e entrou no banho. Deixou que a água quente corresse livremente pelo seu corpo. Sentia-se bem. De repente, o som passa a entoar “stand by me”. Apoiou as mãos na parede. Respirou fundo. Tentou, mas não conseguiu evitar as lágrimas. Chorava compulsivamente, como quando era criança para que ninguém a visse. Um choro doído, silencioso. Ficou ali por quase uma hora. Recompôs-se. Saiu do banho, escovou os dentes, trocou de roupa e decidiu que àquele sentimento não valia a pena.


De volta ao quarto, deitou-se na cama. Pegou o celular. Nenhuma mensagem. Tentou ligar, mas o celular estava fora de área. Levantou, seguiu até a poltrona que ficava encostada na janela. A meia luz do abajur dava um ar meio melancólico àquele quarto que já tinha sido palco de noites de amor inimagináveis. Olhou ao redor. Na estante, um retrato da mãe, fazia tempos que não à via. O cd já estava repetindo as músicas. Próximo ao retrato da mãe, uma foto deles dois. Sentiu saudades, mas ao mesmo tempo impotência. Apoiou a mão no rosto e deixou que a noite se encarregasse de lidar com aquele sentimento de arrependimento.

Catarina Barbosa