sábado, 6 de setembro de 2008


Foto: Carlos Sillero


Me deixem em paz”, dizia ela aos prantos.

Julia era uma mulher forte, decidida e bem sucedida, mas não era muito boa com relacionamentos. Nos últimos tempos, quem estava de fora poderia até dizer que “colecionava desgostos”. Daniel, seu, agora, ex-namorado, era um bom partido, como diriam. Carreira estável, educado, cavalheiro, romântico, do tipo que liga antes de dormir só pra desejar “boa noite”, manda flores, paga a conta e ainda é bonito. Até aquela noite, tudo parecia um conto de fadas para Julia, mas será que é possível viver contos de fadas?

O aniversário de 30 anos de Luisa, sua melhor amiga, foi o palco para o espetáculo daquela noite, que estava longe de ser a aniversariante. Daniel pegou Julia pontualmente às nove, tempo de ela sair do trabalho e ir em casa se arrumar. Como sempre, chegou cinco minutos atrasada. Paulo a recebeu com um sorriso. Beijaram-se como cumprimento e seguiram para a festa. Estava radiante, linda em seu belíssimo vestido prata. Era uma mulher bonita em seus 32 anos de idade, tinha cabelos longos e pretos, a pele morena clara, olhos castanhos e um belo par de pernas que fazia qualquer homem virar como se fosse uma bela bunda, tão adorada pelos brasileiros. Seus 1,64m combinavam com seus 52 kg ‘’suamente’’ malhados e o vestido valorizava suas formas. Daniel comentou no caminho: “você está linda”. Sabia que estava linda. Antes dele aparecer para buscá-la, recebeu inúmeros olhares da porta do apartamento até o hall de entrada do prédio, sem contar que experimentou o vestido várias vezes, olhando atenciosamente cada possível defeito. Então, era difícil estar feia. Olhou para o namorado, escolheu o tipo modesto e disse: “que isso, não tem nada demais, é só um vestido”.

Ao chegar ao aniversário pôde ver como Daniel estava, afinal quando entrou no carro não dava para ver direito. Estava lindo, quer dizer, era lindo. Branco, 30 anos, 1,85m de altura, forte, musculoso não, forte. Cabelos castanhos claros e um belo sorriso com covinhas no rosto que davam a ele uma aparência angelical. Estava de calça social jeans escura, camisa preta e um sapato social marrom, aparentemente simples, mas encantador. A barba feita, o relógio e o perfume que a deixava louca, completavam o conjunto. Sentiu-se a mulher mais feliz e sortuda do mundo. Um homem bonito, cavalheiro, que a amava, pensou “finalmente encontrei alguém com quem posso ser feliz”.

Ao entrar no aniversário foi recebida pela anfitriã, e como Luisa era boa com festas, nunca contratou serviço de buffet, recepcionistas ou coisas afins, só os garçons mesmo. Dona Raimunda, mais conhecida entre a gente como “dona rai’, era a responsável pelo sucesso das festas de Luisa em parceria com sua mãe, a “tia Antônia”, responsável pela decoração. Dona rai, tinha 60 anos de idade, mas ninguém a impedia de trabalhar e não gostava de ficar parada. Luisa compensava o serviço dela, com bons pagamentos. Era, na verdade, membro da família. Já sua mãe, desde que perdeu o marido, pai de Luisa, morava com a filha e fazia questão de tomar a direção da casa.

Luisa recebeu a amiga rindo como sempre, tinha uma risada gostosa de ouvir, ao contrário da de Julia que era escandalosa. Disse rindo à amiga: “vamos entrando, que as duas estão com tudo hoje”. O casal se acomodou em um grande sofá. Ele pegou um copo de uísque e ela um suco de uva. Estava tudo perfeito, até que de repente, Luisa a olhou com aquela cara, que dá medo só de pensar o que pode ser. Julia entendeu o recado, deu um beijo no Daniel, e disse: “já volto, vou ao banheiro”, indo ao encontro da amiga.

Ao chegar ao corredor, Luisa a puxou e disse: “não sabes quem está aqui!”. Ela atordoada, disse: “fala logo, não me agonia Lu”. “O Paulo. Tá lá na frente. Conversando com a minha mãe”, disse ela pausadamente. “O Paulo?!”, indagou Julia com a surpresa de quem viu um elefante rosa, “sério?”, continuou. A amiga, com o semblante sério, respondeu: “sério, e o pior, disse que quer falar contigo”. A cabeça de Julia girou tudo o que precisava naquele momento era não encontrar com o Paulo, na verdade, não precisava encontrar com ele nunca mais na vida, pensou.

Paulo, foi seu primeiro namorado, acabaram porque na época em que eram namorados, descobriu que ele a traiu com sua professora de inglês, Carla. Uma bela mulher, além de ótima pessoa, a pobre não teve culpa, não sabia que ele era seu namorado. Enfim, aquilo era assunto do passado, achava que tinha esquecido, mas sua agonia parecia dizer que não. Tentou parar de pensar na presença dele, e voltou para o lugar onde se sentia confortável, ao lado do Daniel. Olhou para a amiga e disse: “hoje não”. Ela baixando a cabeça lamentou: “desculpa, não sabia que ele vinha, foi a mamãe que convidou”.

Quando voltou, seu namorado, até 15 minutos atrás perfeito, tinha arranjado uma conversa bastante atraente. Bárbara, sua maior raiva de adolescente, não era bonita, mas era incrivelmente interessante. Como a odiava. Chegou sorrindo, cumprimentou-a educadamente e sentou-se ao lado de Daniel. Percebeu rápido que a conversa entre eles fluía e 20 minutos depois, contados no relógio caríssimo do namorado, descobriu que estava deslocada e seu então namorado, havia estudado com a maldita Bárbara. Tentou em vão entrar na conversa, mas era excluída sempre que surgia alguma piada relacionada à medicina e pouco entendia sobre termos técnicos. Sua carreira publicitária, não pedia que entendesse aqueles termos, além do que, eles não eram interessantes pra ela. E como odiava não saber discorrer sobre algum assunto. Tinha vontade de sair dali, estudar e voltar só para ter o que dizer. Tentou fazer com que ele desistisse da conversa sobre vasos capilares, dizendo: “vou a varanda tomar um ar, vamos?”. Teve que repetir umas três vezes para que ele pudesse entender, foi então, que mudou de idéia e disse: “vou a varanda tomar ar”, e ele: “tá” e virou-se.

Levantou com a expressão mais insatisfeita do universo “como assim me trocar? Ainda por cima pela Bárbara!” que humilhação, pensou. Mudou de idéia, foi primeiro ao banheiro retocar a maquiagem, precisava disso. Disfarçar seu ódio, sua repugnância e a presença do Paulo na festa. Ao entrar no banheiro, chorou. Borrou a maquiagem toda, mas por sorte, tinha tudo na bolsa. Nem sabe como coube tudo ali dentro, lápis, rímel, corretivo, batom, enfim que bom que tinha tudo as mãos. Aliviada, linda e com cara de feliz, saiu do banheiro. A conversa no sofá continuava. Passou por eles e foi à varanda, mas ninguém a notou, Bárbara sim, mas fingiu que não a viu, o namorado nem isso.

Por incrível que pareça não tinha ninguém na varanda, ficou ali apreciando o jardim a sua frente, lindo, iluminado, verde, como gostava da natureza. A noite estava incrivelmente bela, o céu estrelado, o vento movimentando as folhas das árvores. Fechou os olhos e respirou fundo, deixou o vento passear nos seus cabelos, sentia tudo, a vida, a felicidade que não estava consigo naquele momento, tudo. Quando abriu os olhos, percebeu que tinha alguém que a fazia companhia. Era Paulo.

“O que fazes aqui?”, perguntou. Ele rindo, cínico como sempre, disse: “oi, tudo bom? Quanto tempo”. Não respondeu, conhecia àquele truque dele, tenta se fazer de bonzinho pra que ela esquecesse a raiva. Ele continuou: “estás linda, mais linda do que antes”. O elogio dele realmente não importava pra ela, pelo menos até aquele momento, mas ele deu continuidade: “não quero que digas nada, só escuta. Queria pedir desculpas sobre o que aconteceu com a gente, naquela época fui um idiota e não tive sequer a oportunidade de explicar as coisas. Nada do que eu disser vai mudar o passado, mas...”. Nesse momento teve vontade de interrompê-lo e dizer: “nada mesmo”, mas ficou calada e o deixou continuar. “Se eu pudesse não teria feito nada daquilo, foi algo que fiz e me arrependo até hoje, preciso que me perdoes” e foi se aproximando dela. Nesse momento deu um passo pro lado. A varanda era pequena, mas não tanto. Falou grosseiramente: “o que pensas que estas fazendo?”. Ele com os olhos cheios de lágrimas, disse: “eu te amo Julia, nunca te esqueci, passaram seis anos e eu não consigo te esquecer, já tive relacionamentos sérios, mas não consigo viver com outra pessoa, eu quero estar contigo”. Nesse momento sentiu o corpo congelar, não tinha estudado a probabilidade dele falar uma coisa dessas, sempre tentou de alguma forma planejar as coisas, pra não ser pega de surpresa e aí estava uma situação sem planejamento à sua frente. Sentiu que aquele momento era um desses em que as coisas acontecem quando menos desejamos. Ficou parada por um bom tempo, foi quando ele cobrou uma palavra: “fala alguma coisa”.

Paulo era bonito, não mudou muito desde a época em que namoraram, só adquiriu uma aparência mais séria. Tinha 33 anos agora, era branco, 1.80m, cabelos pretos, olhos e cílios grandes. O que ela mais gostava nele era o sorriso, na verdade sempre admirou sorrisos. Tinha também a mão macia, algo que lembrou quando ele tentou tocá-la. Sentiu o coração parar quando ele fez isso. Gostava dele, seis anos depois e ainda gostava de Paulo.

“Não sei o que dizer”, foi o que conseguiu pronunciar. Precisamos conversar em outra hora, em outro momento e foi saindo da varanda. Nessa hora, ele parou a sua frente e a abraçou “vai dizer que não sentes nada enquanto te abraço”, falou. Foi terrível e perfeito ao mesmo tempo, o abraço dele era o que ela não sentia nos braços dos seus, seis ex-namorados e inúmeros relacionamentos rápidos. Por isso não era feliz, não tinha o abraço do Paulo. Mas como pode gostar de alguém que a traiu? Não apenas fisicamente, mas traiu a sua confiança. Como pode? Não sabia a resposta, só sabia que o que eu sentia ali, em um simples abraço, e não sentia aquilo nos braços dos homens bem sucedidos e aparentemente perfeitos com quer se relacionou. Queria mais do que um abraço, queria ficar, estar com ele. Mas como passar por cima do seu orgulho? Retribui o abraço de forma desajeitada e encostou a cabeça no peito dele, e como de costume, fechou os olhos para se lançar ao momento que vivia.

Quando abriu os olhos Daniel e a Bárbara estavam na entrada da varanda, olhando para ela e para Paulo com uma expressão de surpresa e ódio ao mesmo tempo. “O que está acontecendo aqui?”, disse em voz alterada. Foi então que o Paulo respondeu: “eu amo a Julia, Bárbara. Desculpa, mas eu a amo”. Percebeu que tinha algo estranho naquela conversa. Paulo sem jeito virou para Julia e disse: “ela é minha noiva”. Não acreditou. Aquele era o quarteto amoroso mais sem cabimento da face da terra. Ela com o Daniel e a Bárbara com o Paulo. Parece que teria que mudar seus conceitos sobre as festas da Luisa, algo que deveria ser divertido, não passava de piada sem graça nenhuma.

Tentou sair dali, mas não consegui. Daniel a segurou pelo braço e quase chorando perguntou “o que estavas fazendo nos braços dele Julia?”. Ela, sem reação, deu uma desculpa esfarrapada “tava abraçando, ele é um amigo”. Foi então que ele começou a gritar: “Amigo? Ele diz que te ama e tu abraças ele? Estas louca Julia? O que tu estás fazendo?”. Tentou sair, mas ele ficou cada vez mais descontrolado, nunca viu o Daniel assim, ele era sempre tão calmo.

De repente, todos os convidados começaram a olhar para ver do que se tratava. Bárbara aos gritos com o Paulo, pedindo explicações, chorando e Julia com o Daniel, tentando explicar em vão o que nem ela tinha entendido. Num acesso de raiva, ela empurrou o namorado e conseguiu sair da varanda. Todos olhavam atentos, num silêncio quase sepulcro, provavelmente pensando “que vergonha” e pra piorar, não conseguiu segurar as lágrimas, o rímel borrou todo o seu rosto de preto, o vestido lindo, agora estava amassado, o cabelo desarrumado.

Na saída da casa da amiga, sentiu uma mão puxar seu braço com força, “não vai embora, vamos conversar...”, era Daniel, consternado depois que Paulo explicou que nada havia acontecido. Ela, descabelada, com a maquiagem borrada não queria mais saber de conversa. Nesse momento, todos vieram para a porta, como mulheres fofoqueiras nas portas de suas casas. O circo estava armado, odiava aquilo. Paulo apareceu com cara de arrependido na porta e implorou em prantos: “não vai, precisamos conversar”. Nessa hora fez sinal para um táxi que passava, Daniel tentou novamente fazer com que ela ficasse “fica, eu te levo em casa, vamos conversar...”. Julia, orgulhosa, optou naquele momento por deixar duas pessoas chorando, sem se importar com ninguém, apenas consigo mesma. Como não sabia perdoar, abriu a porta para guardar mais um desgosto e com rancor, gritou aos prantos: “Me deixem em paz”.


Catarina Barbosa

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